DAS PEQUENAS ALEGRIAS
Para o meu amigo Paulo Bittar
Nestes tempos tristes, de pandemia e tirania política, exercitei as pequenas alegrias. Fui obrigada a reparar nelas. Há quem saiba, naturalmente, viver as pequenas alegrias. São poucos. Há quem saiba delas de ouvir falar e acha que é coisa pra experimentar na velhice, quando as “grandes” já estariam distantes de nós.
Tenho um amigo que sabe delas. Ele sabe de esquinas com cedros, nesta cidade que é cada vez mais concreto e poluição; sabe de vacas, que elas gostam de música; sabe de constelações, de vez em quando me liga pra me mostrar uma estrela. Ah! E ele uiva pra lua.
Esse meu amigo faz queijos deliciosos (de vacas que escutam música). Um dia, eu lhe disse que ouvira dizer de um queijo muito bom fabricado em um lugarejo próximo da minha cidade natal. Ele, como não é de ficar ouvindo dizer, logo me fez a proposta: ir conhecer o queijo, e a dona do queijo! Afinal, um queijo com nome Alzira devia ter uma história interessante. Achei um convite sem graça. A tal cidadezinha fica no percurso que faço semanalmente, num lugar bem bonito por sinal, um pé de serra cercado por montanhas. Ensaiei muitas vezes uma entrada, mas a vida sempre me engole. Pensei bem e achei que um passeio seria uma oportunidade de sair da prisão em que nossas casas se transformaram.
Saímos da cidade pelo caminho mais longo, mas menos árido, menos povoado: curvas em meio a resquícios de matas, vento fresco. E a viagem seria muito isso: contemplar o que sobrou da Mata Atlântica em nossa região e os ipês amarelos, abrir a janela pra sentir um cheiro bom de mato, espiar umas poucas fazendolas escondidas no caminho, ouvir uma boa música, conversar e rir de bobagens. Do banco do carona, viajei diferente.
Até que bateu uma fome, e não estava em nossos planos parar em um restaurante de beira de estrada; meu amigo nada óbvio já buscava uma árvore longe dela, longe do ruído dos carros. Dirigia e girava enlouquecidamente a cabeça buscando “o lugar”. Até que, de repente, inadvertidamente, cruzamos a rodovia e pegamos uma “estrada de chão” (que é como falamos por aqui). Seu radar funcionara e encontramos, a uns quatrocentos metros do asfalto, a árvore, e seu entorno: um curral encravado numa pequena mata; uma casinha aparentemente despovoada; vacas pastando solenes, ruminantes, atentas; e um bode que nos encarou de frente, com sua respeitável barba de velho. Sem querer incomodar, ali mesmo tivemos nosso almoço, ao som de um trio jazzístico, completamente aprovado pelos ruminantes. Coisa boa!
A viagem de volta foi feita também de paisagens e histórias, minhas e dele. Ele dava sonoras e fartas gargalhadas, ainda mais sonoras em contraste com o meu riso econômico. Umas cinquenta gargalhadas num trajeto de menos de 100 km. Me ocorreu que eu era miserável no que diz respeito a esse tipo de manifestação de alegria.
Me ocorreu também que as boas gargalhadas têm uma força incrível. São tão necessárias nestes tempos sombrios. Elas ressoam a memória feliz dos bons momentos que a vida nos oferece. Rasgam o céu escuro com seu lampejo de raio. Iluminam. E, não obstante sua expressão de força grandiosa, têm tudo a ver com as pequenas alegrias que vão alimentando a alma, dia a dia, com os afagos da vida: o sol batendo na janela, um vento fresco de manhã, o cheiro do café, a descoberta de um livro bom, o telefonema de um amigo que anda sumido...
A gargalhada deve ser uma espécie de soma das pequenas alegrias que vamos acumulando num processo lento de educar a alma, no exercício contínuo de enfrentar a vida, que não é fácil. Um leve sorriso, um riso aqui outro ali e um dia, a gargalhada, resultado do exercício de alegrar-se. É a alma fortalecida encarando o absurdo sonoramente, enfrentando os brutos. “A alegria é a prova dos nove”. A transgressora e necessária alegria.
Begma Maria Cristina Barcelona
Juiz de Fora, 27 de agosto de 2021.